Por Ademilson Medeiros de Azevedo
“Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que
sai da boca de Deus!" (Mt 4,4)
Nós,
cristãos, herdamos da tradição judaica o costume de ler e orar a Palavra de
Deus. O próprio Jesus, no Templo, desde pequeno, já ensinava a Palavra de Deus
(Lc 2,41-52); e nas sinagogas, aos sábados, rezava salmos e lia trechos da
Sagrada Escritura, que apontavam a chegada do Reino de Deus (Lc 4,15-22).
Quando
reunidos em comunidade, os primeiros cristãos lembravam as palavras e os gestos
de Jesus, sua morte e ressurreição, a vinda do Espírito Santo; davam graças a
Deus, oravam e se alegravam. A cada reunião tentavam compreender tudo aquilo
que havia acontecido com Jesus, e os sinais que estavam acontecendo com eles no
dia-a-dia da missão.
Na história
da liturgia da Igreja Romana, em parte do 2o milênio, as Sagradas
Escrituras deixaram de ser lidas nas celebrações litúrgicas. O povo não tinha
mais acesso à Palavra de Deus, sendo evangelizado através dos “sermões” e das
lendas religiosas acerca da vida dos santos e do Santíssimo Sacramento. A
recitação do rosário e a prática das novenas mantiveram a fé cristã viva por
vários séculos.
Foi o
Concílio Vaticano II que devolveu à Santa Missa e às outras celebrações
litúrgicas o lugar privilegiado da Palavra de Deus: “Na celebração litúrgica é
máxima a importância da Sagrada Escritura. Pois dela são lidas as lições e
explicadas na homilia e cantam-se os salmos. É de sua inspiração que surgiram
as preces, orações e hinos litúrgicos...; é necessário que se promova aquele
suave e vivo afeto pela Sagrada Escritura...” (SC 24).
Hoje, dois
mil anos depois, também nós, discípulos, continuamos nos reunindo em
comunidade, ouvindo as palavras de Jesus, tentando compreender, com a ajuda do
Espírito Santo, o que está acontecendo e buscando uma palavra de vida para nós
mesmos, para a comunidade, para a sociedade e para o mundo. Na verdade, Deus
continua nos falando hoje.
A Liturgia
da Palavra é semelhante a um diálogo entre duas pessoas: Deus e seu povo, Jesus
e sua comunidade reunida no Espírito Santo. É o diálogo da Aliança (Êx 19 –
24). Nela, há momentos em que ouvimos a fala do Senhor e há momentos em que a
comunidade aclama ou responde àquilo que ouviu. Isso requer de nossa parte:
atitude de fé, de acolhida, de profunda escuta; requer a disposição para entrar
em diálogo e comunhão com o Deus da Aliança.
É preciso
redescobrir a Liturgia da Palavra como um diálogo vivo e atual de Jesus com os
seus discípulos, um diálogo amoroso, através do qual o Senhor vem alimentar
nossa esperança, podar nossos vícios, aprofundar nossa fé e colocar a
comunidade com mais firmeza no caminho do Reino.
A Liturgia
é o lugar privilegiado do anúncio da Palavra de Deus e o contexto mais indicado
para dar à sua proclamação toda a sua força. A Liturgia une a escuta pessoal da
palavra com a dimensão da igreja. Só a liturgia une o sinal ao fato, já que,
com o próprio ato, anuncia e opera a salvação que é proclamada. Na liturgia a
palavra é acolhida como palavra sagrada, na atualidade do mistério da salvação.
A Palavra
de Deus é recebida pela Igreja e na Igreja. Por meio dela, Deus comunica sua
Palavra permanente a nós e por nós, tornando-a presente e eficaz. O Evangelho,
portanto, deve ser a fonte da pregação, e os ouvintes devem deixar-se converter
pela Palavra, a fim de poder anunciá-la com autoridade.
A Palavra é
tanto mais eficaz quanto mais Cristo está presente no ato de sua proclamação,
quanto mais o conteúdo da mensagem implicar sua ação em salvar, quanto mais
empenhada estiver a Igreja. Ora, em toda a proclamação autêntica da Palavra,
encontram-se mais ou menos presentes estes elementos. Se eles vierem a faltar
(se, por exemplo, não é a Igreja que pronuncia a palavra), estamos diante de
uma catequese.
A presença
de Cristo chega à sua máxima intensidade na assembléia dos fiéis reunidos em
tomo do altar. Nela, a Palavra é ligada ao rito, que é "ação Cristo",
e reencontra sua força original daquela proclamação que salva. Assim o rito, em
íntima relação com a Palavra inspirada, proclama, através de símbolos, aquilo
que a Bíblia exprime com a palavra sonora, Da união dos dois meios de expressão
surge uma proclamação única, de particular efeito pedagógico.
A própria
liturgia se transforma em pregação da Palavra de Deus. Aqui, a Palavra adquire
a máxima intensidade no significar e no comunicar a ação salvífica de Deus.
Aqui a comunidade encontra o modo mais eloqüente, chegando a cobrar uma
resposta à proposta divina. A homilia tem a função de explicitar a fé dos
presentes, o significado dos vários elementos litúrgicos, também em relação à
sua situação, para que o encontro dialogal com Deus se torne verdadeiramente
consciente para todos e cada um.
A homilia,
assim, apresenta algumas funções como:
Fornecer
aquele mínimo de informações necessárias para que o texto bíblico e, às vezes,
o texto das orações, sejam compreendidos em seu justo significado;
Expressar a
mensagem em seu sentido histórico, passado e atual, favorecendo uma tomada de
consciência da situação para que cada um se reconheça diante de Deus e se
disponha a escutá-lo e a dar-lhe uma resposta pessoal;
Fazer
descobrir em todo o texto bíblico e nos sinais sacramentais, o significado
profundo em relação ao acontecimento central da salvação, para que este seja,
aqui e agora, anúncio desta salvação de Deus proposta a toda assembléia;
Aprofundar
e traduzir a mensagem revelada, a fim de que o essencial da revelação seja
anunciado aos ouvintes, de maneira a ser compreendida por aquilo que ela é, sem
enganos;
Ser
profética, isto é, expressa um juízo sobre um mundo e o anúncio de um mundo que
nasce ou deve nascer, segundo o desígnio de Deus;
Testemunhar
o Cristo pela afirmação da fé, a expectativa da esperança e as iniciativas de
caridade, que devem encarnar-se nas experiências pessoais e nos acontecimentos
eclesiais;
"Como
a chuva e a neve descem dos céus e a ele não retornam sem haver regado a terra
e sem a ter fecundado e feito germinar, para que ela dê a semente ao semeador e
o pão que é comido, assim também a palavra que sai de minha boca não retorna
sem resultado, sem ter feito o que eu queria e levado a afeito sua
missão". (Is 55,10-11).
Para que
este desígnio de Deus de realize em plenitude, é necessário que esta Palavra
seja acolhida na obediência da fé (Rm 1,16). A partir de então, o cristão se
torna testemunha dessa Palavra (At 4,20) e sua vida se torna ação de graças e
palavra de gratidão (Cl 3,15-17).
É a escuta
da Palavra que faz nascer a fé. A Igreja não nos legou um livro, mas a Palavra.
Por isso, é verdade que a salvação não requer, pura e simplesmente, a leitura
da Bíblia, e sim que sejam ao menos ouvidas as realidades da salvação tais como
a Igreja as proclama.
Se a
leitura pessoal da Bíblia é importante, a escuta da Palavra é indispensável
para ser encontro direto com o Senhor, realmente presente em sua palavra
proclamada. É preciso efetivar a criação de um clima de escuta da Palavra, numa
atitude de oração e de espera. A insistência sobre a eficácia da Palavra divina
não diminui a necessidade de disposições objetivas.
Eficácia
não significa ação automática. Ela está ligada à transformação que a Palavra faz
na vida daquele que a acolhe. O amor de Deus toma a iniciativa, mas não força;
é a fé que acolhe o dom oferecido. É a Palavra que abre a alma e a estimula a
acolher o Senhor. Isto supõe uma disposição prática inicial, que assim poderia
ser resumida: na liturgia é Deus quem fala, e é a nós que Ele se dirige, hoje,
Quem fala não é Isaías, um evangelista, ou Paulo... É o próprio Deus.
Esta fé é a
disposição fundamental, mas não a única. O contato com a Palavra deve por em
movimento todo o dinamismo espiritual, sob o influxo do Espírito Santo. Na
realidade não basta o nosso esforço. O Espírito Santo, que inspirou as
Escrituras, está em ação em nosso intimo, como vimos, para que possamos acolher
o mistério.
Então, de
fato, o que é a Palavra de Deus?
É
revelação: a ela se adere com a fé (2Tm 3,15).
É promessa:
a ela se adere com esperança.
É regra de
vida: a ela se adere com amor (Dt 6,6ss).
É dom no
qual Deus se oferece livremente: acolhendo-o, entra-se em comunhão com Ele.
Convém
acolher a Palavra "com a alegria do Espírito" (Ts 1,6), "Com
docilidade" (Tg 1,21); ela deve "habitar em nós" (Cl 3,16),
"cumpre em nosso meio seu curso" (2Ts 3,1). Em outros termos, é
preciso acolher a Palavra de modo a deixar-nos modelar por ela, a abandonar-nos
à sua força divina.
Santo Efrém
diz, através de sugestivas comparações, que a Palavra continua a frutificar: "Dos
campos vem à bênção da messe, da vinha frutos saborosos, e da Sagrada Escritura
o ensinamento vivificante”.
O campo e a
vinha só dão frutos num tempo restrito, determinado; mas as Sagradas Escrituras
oferecem ensinamentos vivificantes toda vez que são lidas. Campos e vinhas
cansam e não dão duas colheitas por ano; mas das Sagradas Escrituras podem-se
colher uvas todo dia, sem que venham a faltar às uvas da esperança que Ihe são
Inatas.
Todos já
tivemos a experiência bastante constrangedora de falarmos com uma pessoa e ela
não dar a mínima importância ao que dizemos. Ouvia, mas não prestava atenção.
Será que sempre prestamos atenção, estamos interessados no que Deus nos
comunica?
Qual a
qualidade das respostas que damos na Missa depois das leituras? Será que o
“graças a Deus” brota de um coração que se esforçou para compreender e
assimilar o recado amoroso de Deus e agora agradece como tendo recebido uma
parte do tesouro divino?
Existem
algumas desculpas possíveis para ouvirmos descuidadamente a Palavra de Deus.
Uma delas é o leitor, que nem sempre será perfeito. Aliás, nunca. Deveríamos
pensar que o leitor é o último elo da corrente que nos une a Deus pela sua
Palavra. Afinal, Deus enviou a mensagem, o profeta ou apóstolo recebeu a
mensagem e a transmitiu, o autor sagrado colocou por escrito a mensagem, o
redator final, o copiador do texto, o tradutor, a editora... O leitor é muito
importante, pois faz a ligação imediata com a Palavra de Deus e conosco. Mas
não podemos perder de vista que é Deus que nos fala através do leitor. Deus
falando conosco e para nossa vida concreta.
Mas a
verdade é que somos muito ágeis para esquivar-nos da Palavra de Deus: todas as
razões parecem-nos boas. Por exemplo: o profeta Jeremias chamou à conversão o
povo de Jerusalém e anunciava que a obstinação no mal conduziria à catástrofe.
Foi criticado, acusado, preso. O povo não se converteu e Jerusalém foi
arrasada. Jesus proclamava a vinda do
Reino de Deus, falava como nunca alguém havia falado, fazia curas: o povo de
Nazaré achou intolerável que o filho do carpinteiro demonstrasse tal sabedoria
e tal poder.
Quantas
vezes caímos também na mesma armadilha. Ouvimos uma pregação, e em vez de
buscar que coisa Deus quer dizer-nos, que proveito espiritual podemos tirar
daí, observamos que a pronúncia do pregador não é perfeita, que a idéia
expressada numa frase não é muito clara, que errou um pouco a gramática.
Pensamos também que o pregador não é santo. E com todas essas considerações nos
dispensamos de receber a mensagem. Em verdade nos privamos de todo proveito
espiritual, fechamo-nos aos dons de Deus, justificamos a nossa inércia e
fazemos crescer, sem nos darmos conta, os nossos defeitos: a soberba, a
preguiça espiritual, o individualismo. E se falamos com os outros... Se o pior
cego é o que não quer ver, o pior surdo é o que não quer ouvir. Será que, às vezes,
não somos surdos à Palavra de Deus, porque não queremos ouvir? Deveríamos
aprender do jovem Samuel que dizia: fala, Senhor, que teu servo escuta.
Vamos nos
aproximar deste campo e saboreemos os produtos de seus sulcos que produzem a
vida. Dele coIhamos espigas de vida: as palavras de nosso Senhor Jesus.
Ademilson Medeiros de Azevedo
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